Desta vez estava disposto a entregar-se, por inteiro, a nova possibilidade que se mostrava a sua frente. Sentia que era sua última chance de recuperar suas asas e voltar a sonhar sua vida de anjo.
Não estava amedrontado; tão pouco, angustiado. Seu sangue, diferente das situações anteriormente semelhantes a esta, movia-se como água calma em noite de mar tranqüilo. Apesar da aparente calmaria seu coração pulsava dizendo que era chegada a hora de se entregar. Sentia isso e, doravante tendo sentido a mesma coisa muitas outras vezes, sabia que, desta, era pra valer. Não duvidava. Mas o preocupava o fato de estar tão pouco preocupado. Ia se entregando aos poucos. Não. Aos muitos e muitos segundos passados velozmente. Sabia que, desta vez, era pra valer. Seguro que se entregaria à possibilidade, à vontade, ao desejo e ao sonho que não era mais sonho __ Neste instante, realidade. Não era nada antes e nada depois. Um niilismo vivente. Agora é o tudo, condensado num só momento de sua vida mensurada. O agora. Este agora tudo continha e detinha. Era para ele, tudo o que quisera a vida inteira. Longa vida de curtos trinta anos. Vivera sua vida até aqui, vasculhando e descobrindo no mundo as qualidades e as quantidades do seu desejo. Não tivera sorte até então.
Agora, ele não precisava de sorte. Não é mais preciso desejar, nem sonhar. Seu drama não é mais um monólogo. Escreveu um personagem para dividir com ele uma bela história. Não é mais sozinho num roteiro seu. Sabe criar alegrias e amores para dividi-los no palco e assim, ir ensaiando a vida.
Não precisa pedir. Só receber, o que passou a vida toda a mendigar. E ele sabe que merece. Veio no tamanho exato de seu sonho; só lhe resta acolher e perecer a doce e inútil vida de um sonho realizado. Ele quer e está pronto. É a hora de voltar a ter asas. E para que você me acompanhe neste relato e comemore esta estória feliz de anjos quebrados, conto-a do começo; do seu alfa. Descrevo sua gênesis criadora.
No começo era noite. Não trevas. Noite e, por enquanto, sem estrelas. Não havia luz. O lugar parecia sem vida, mas, qualquer um que olhasse com mais cuidado, o que requer um olhar oriental sobre as coisas, notaria que ali pulsava a vida. O ato inaugural estava inserido num grande e fétido cenário. Uma arquitetura velha, mal preservada, envelhecida pela falta de amigos e suja de uma sujeira humana e bela.
Aliás, sujidades não faltavam. Nem no chão, nem no ar, nem na cabeça dos passantes, na mala dos viajantes e claro, nos corações dos ficantes. “Sujeira moral” diziam os da seita evangélica que, aos berros, do outro lado da rua, cantavam seus hinos pedindo salvação aos arrependidos de toda sujeira, graxa e lama, a um Deus surdo. Cegos, coitados, adorando um deus que não ouve. Não enxergavam os anjos quebrados do lado de cá da rua. Chão-calçada que não ousam pisar, temendo a repressão do pastor e do seu deus que não era bom. Não sabem ainda, que não é preciso morrer para encontrarem a salvação e sim, atravessar a rua, vivos, em direção ao outro, ao sujo, ao imoral e ao pecado.
Enquanto esses não atravessam a rua, continuemos, eu e você, neste lugar onde o improvável aconteceu. O lugar é dos passantes, como toda e qualquer rodoviária deste país. Levando esta, a fama de a mais feia de todas as outras. É realmente sem beleza; sem atrativos. Contudo, o que a faz tão repugnante é o que a torna humanamente interessante. É com toda certeza, um espaço plural. Um céu de anjos quebrados.
Além das famílias que embarcam e desembarcam todos os dias, e noites, nas suas plataformas em direção ao interior ou à fronteira, tem os que chegam e ficam. São mulheres que, de tão feias e tristes, barrigas e corações grandes, são sim, lindas e belas. Atraentes aos olhares e baratas para os bolsos dos passantes. Elas chegam à busca do dinheiro para compra do remédio controlado do filho mais novo e para o aluguel de um cômodo, sem banheiro, onde deixou a mãe, agora avó, voltar a brincar de ser mãe. Ninguém sabe seu segredo. Só os homens desse lugar sujo, cúmplices dum segredo familiar.
Não faltam os bêbados. São muitos, mas, são os mesmos. Se os ouvir, saberá que não são bêbados, mas são João, Alberto, Souza, Garcia; com histórias e vida vivida mais dignas de serem publicadas do que esta que vou lhes contando. Pedem dinheiro pro café e você dá a moeda pra pinga. Não há como negar. São solitários cheios de fantasmas.
Andam por lá também, jovens magros e envelhecidos, tentando salvar suas vidas usando substâncias que trazem a morte. Viciados traficantes de rua, sem cama para dormir, vão ficando por ali. Passando um fumo aqui, um golpe ali e, no final do dia, quem sabe? Talvez uma marmita fria para esquentar o jovem estômago abandonado.
Nesta região de fronteira não faltam os matadores de aluguel e sua bagagem de poucos calibres. Também os peões de fazenda que vêem gastar o seu pouco salário na capital. Doentes do mato, a procura de cura na cidade. “Bugres” e suas crianças mestiças a mendigar alguma sorte aos turistas gringos com seus mochilões. A fauna neste lugar não carece de espécies e, as que sobrevivem, tão pouco padecem de extinção. A impressão que fica é que nunca acabarão.
Subo a escada com você para apresentar o prédio no seu primeiro e único piso superior. No alto, no ar, bem próximo do céu azul, o que não poderia ser diferente, aonde o encontro dos anjos vai se dar. O lugar abriga os guichês de venda de passagens interestaduais e internacionais. Compra-se ai passagens para as viagens mais distantes e impensáveis. A dele, uma viagem improvável de anjo quebrado, adquire-se num outro guichê, ou melhor, numa bilheteria de cine amor.
Ele aproximou-se com cuidado, como fazem todos, observando para não ser surpreendido por nenhum outro olhar, também cuidadoso, que o visse entrar ali onde, numa tela grande, se ensina o amor. Compra o ingresso, usa uma carteira de estudante antiga __ daquelas muitas vezes em que tentou o diploma universitário __ e obtêm a meia entrada. Gira a catraca com a força do seu quadril, já riste e tensionado pela viagem a seguir. O lugar, como de costume é o mesmo. Grande, pé-direito alto, muitas cadeiras, mas todas vazias, já que ali naquela sala, o melhor é flutuar pelo mar escuro de ácaros e não sentir o cheiro do carpete velho e mofado. Alguns, cansados, encostam-se nas paredes à espera de um anjo, caído quem sabe, a abraçar-lhes ou dar-lhes novas asas para voar no céu do paredão.
Voltar a voar. Era só o que desejava naquele lugar, naquele dia, respirando aquele ar. Que alguém lhe desse asas para alcançar o céu dos seus sonhos realizando fantasias impronunciáveis. Movimentou-se de um lado ao outro do paredão, como quem busca o ar, tropeçando num e noutro, propositalmente sedutor. Usava muito bem as mãos para enxergar naquele lugar sem luz.
Derrepente fez-se a luz. Uma luz indireta que vinha do alto. E a luz era viva. Uma vida que não pertencia a ele, nem a ninguém ali. Vida não vivida e pouco assistida por aqueles. Ninguém estava naquela viagem para sentir o pulsar da vida, em gemidos, sussurros e orgasmos fingidos na grande tela.
“__ Opa. Desculpa.” Pediu ele ao tropeçar no outro. A resposta veio firme, numa pegada que o fez lembrar-se do que o trouxera aquele lugar. Seu membro encarnado irrigou por todo o seu corpo o sonho em sangue tornado tesão. O corpo do outro, já colado no seu, dizia pornografias românticas, muito parecidas com aquelas ditas por bocas ensaiadas, em filmes que contam amores afundados em titanics. Mas ele não assistiu ao filme, era anjo, e por isso acreditou. Não duvidou. Sentia o pescoço sendo beijado e mãos grandes que dançavam pegadas firmes na sua cintura. O outro, não tinha asas; não era anjo, mas, oferecia a viagem esperada. E como este não é um conto erótico, deixo que sua experiência o faça saber o que aconteceu naqueles próximos trinta e três minutos.
O gozo. Continuo daqui. Era assustador o quanto aquilo tinha dado certo. Era perfeito demais para aquele lugar. E foi tanto amor e prazer que choraram juntos lágrimas que, ao rolarem de seus olhos, outrora tristes, cristalizavam formando estrelas. Tanto choraram que a sala escura foi iluminada por uma constelação. Era o universo inteiro ali, naquele instante, comprimido dentro de uma sala velha de cinema. Estrelas de todos os tamanhos e cores. Brilhavam, mas brilharam tanto que todas as testemunhas ali presentes cegaram diante do amor que não era encenado. Não estavam preparados para ver o amor acontecer naquele lugar improvável. Sem testemunhas. Ninguém acreditaria. Só ele sabia que, de verdade, o amor acontecera. Ele e o outro, que não era anjo, não tinha asas, mas trazia escondido sob o zíper da calça, o amor.
Quando saíram dali, juntos para sempre, ele soube que não precisava mais ter asas e que, portanto, não era mais anjo; agora um decaído. Contudo, juntos para sempre. Não queriam mais se separar. Morreriam caso um faltasse ao outro. Um respira o ar do outro. Respiram juntos agora, gêmeos de poesias futuras.
Depois de alguns dias trancados, juntos, num quarto qualquer, não saberiam dizer quantos, um deles teve que trabalhar. A vida é real e não apóia feriados de amor. Mas estavam certos de que eram agora um do outro. Ele, do trabalho, quis ligar e dizer aquilo que todos os apaixonados dizem quando apaixonados estão e que eles, olhem só, de tão apaixonados não tinham dito ainda. Não se viam; somente a voz que na mágica fibra óptica declara o seu amor.
“__ Alô?”
“__Eu amo você.”
“__Vem logo pra casa. Me diz aqui, me abraçando, isso que eu também vou te dizer: eu também amo muito você.”
“__Estou indo.”
“__Estou te esperando, pra nunca mais você sair da minha vida.”
Ah... A vida desses dois mudaria para sempre e essa saudade já sentida no primeiro dia em que passaram longe um do outro, acabaria daqui a pouco, no final do expediente deste, que voltaria a casa do outro, que agora é sua também, porque juntos, sabiam, para sempre estariam.
Juntos para sempre. Era esse o pensamento dele naquela volta desesperada ao ar que lhe faltava. Do outro, acabara de ouvir que, o esperava para nunca mais deixá-lo. A volta foi longa. O suficiente para rememorar suas muitas tentativas frustradas até aqui. Suficiente ainda para esquecê-las. Seus passos apressavam-se a cada esquina. As ruas do centro, àquela hora da noite eram já vazias, sem pedestres. Ninguém que o tirasse dos seus pensamentos e planos pro futuro. Tudo o que pensava, incluía o outro, que lhe dera asas novamente.
Perdido em seus pensamentos encontrou-se de frente ao número do seu novo endereço. A casa não tinha campainha. Então, chamou pelo nome do outro, que não ouviu. Tentou novamente. Nada. Um pouco de angústia. Chamou novamente para passar a angústia. Escutou então o barulho de portão sendo aberto a duas casas dali. Gritou então, pela terceira vez, ao outro; que ouviu, mas procurava as chaves. Do portão que se abriu a poucos metros dali, viu sair três grandes cães, sem coleiras e nervosos para o passeio noturno com seu dono irresponsável. Uma bicha de marca, tipo pouco cérebro e muita, mas muita massa muscular; num shortinho escroto e provocante. Os cães ferozmente avançaram em direção a ele, que gritou por socorro ao outro, que ouviu, mas, não encontrou as chaves que abriam o portão (que o levaria de volta ao céu). Desesperado, gritava pela grade e, quanto mais gritava, mais era atacado pelos cães ferozes. O outro, do lado de dentro da grade, nada pode fazer. Ele do lado de fora, caído na calçada e emoldurado por uma poça de sangue, não tinha mais vida, não tinha mais amor, era sangue escorrendo em rios. Voltara a ser anjo. Morrera gritando pelo outro que por não ter as chaves ao alcance das mãos, deixou que ele voltasse a sonhar sua vida de anjo.
Os assassinos, indiciados no inquérito, eram três. Grandes, de cor branca e manchas amarelas e da raça Pit Bull. No momento do crime, estavam sem coleiras. O animal responsável pelos criminosos chamava-os de “minhas crianças” e jurava feroz, de dentro do seu shortinho, que eram dóceis e atendiam pelos nomes miguel, rafael e gabriel.
Conto premiado no concurso literário da Academia Sul-Mato-grossense de Letras em 2010
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