Uma abordagem sócio-histórica do filme
“Toda Nudez será castigada” (1973).
“[...] Eu dirigi pouco teatro, duas peças... três. Mas prefiro dirigir cinema, porque você tem mais controle. No teatro, por mais que você dirija o ator, ele nunca te obedece. Você vira as costas, ele inventa. E como eu sou obsessivo, odeio que mudem... No cinema você pára ou corta; agora é close, vamos fazer assim. Então há um controle maior sobre o ator. Você pode enriquecer muito mais, porque uma pessoa nunca está apenas em "plano geral", como se diz no teatro. Teatro é chato. O montador Mair Tavares me dizia isso: "Acho o teatro chato porque é tudo no plano geral". Isso é genial! No cinema você aproxima, filma dentro da boca do cara, filma de costas, de cima. Com a câmera, você aprofunda o significado das falas e o que o ator tem a dizer, ou o que ele tem para mostrar, ou o gesto ou o que for. A câmera sublinha, critica, é uma espécie de alter-ego do ator, ela faz um contraponto com ele. De certa forma, ela é um interlocutor do ator, é como se fosse outro personagem. Você tem o ator e a câmera. No teatro, o ator está mais sozinho, ele só interage com atores. No cinema, a câmera tem uma função de interação mesmo. É como se ela fosse um personagem”.[1]
Neste trecho de entrevista concedida por Arnaldo Jabor, o diretor deixa clara sua preferência pelo cinema, apesar de ter dirigido algumas peças. Segundo o mesmo, no cinema, controla melhor o resultado. Interessante notar o poder do diretor de cinema sobre sua obra. O seu olhar é a objetiva do espectador. Ao cortar, juntar fitas, aproximar a câmera para obter um close, afastá-la e registrar um “plano geral”, o diretor de cinema empresta um olhar, ou vários olhares ao expectador que, inocentemente, acredita observar a “imagem-objeto”[2] a partir de sua ótica e perspectiva próprias. Houve sim, a focalização de “uma pseudo-imagem da realidade”[3], porém, determinada pela perspectiva autoral de quem fez o filme.
A obra aqui analisada, a partir de uma perspectiva sócio-histórica é o filme Toda Nudez será castigada do jornalista e cineasta Arnaldo Jabor, realizado em 1973 e que produziu além de outros, os filmes: Eu Sei Que Vou Te Amar (1984), Eu Te Amo (1980) e O casamento(1975) também adaptado de texto homônimo de Nelson Rodrigues como o “Toda nudez...”. Este ganhou o Urso de Prata no Festival de Berlim em 1974, além de dois Kikitos de Ouro no Festival de Gramado, nas categorias de Melhor Filme e Melhor Atriz para Darlene Glória que interpretou o personagem Geni, além de ter suscitado da crítica brasileira e internacional, muitos elogios e comentários favoráveis.
Arnaldo Jabor realizou “Toda nudez será castigada” explorando os limites entre o kitsch e a experimentação estética, entre a tragédia moderna e o melodrama, deixando claro nesta obra o desejo __ mesmo sob uma ditadura militar __ de fazer avançar o debate sobre a representação da experiência brasileira, retomando questões postas pelo Tropicalismo em 1967-68. O filme capturou uma atmosfera irônica de autodesqualificação do povo brasileiro advinda dos desdobramentos do pós 1964. A tragicomédia se afirmou, então à época, como uma nova forma de qualificar o drama social brasileiro e Jabor a radicalizou neste filme.
A fim de realizar a tarefa proposta pela professora, de análise cinematográfica como prática de ensino, na sala de aula, vou trilhar a metodologia esboçada no texto “O filme: uma contra-análise da sociedade? Do qual faço destacar”:
[...] Há poucos historiadores que, em nome do conhecimento e do saber, não tenham estado a serviço do Príncipe, do Estado, de uma classe, nação, em resumo, de uma ordem ou sistema, existente ou não, e que, conscientemente ou não, não tenham sido ministros de certo culto ou combatentes (grifo meu) de alguma causa [...] (_______, p.80).
No caso de um diretor de cine-dramaturgia_ e Jabor parece estar combatendo algo _ o observado acima cai bem, já que um filme, composto de imagens e textos __ mais imagens, é verdade __ mesmo controlado, testemunha. Testemunha as possibilidades postas ao gênio criativo durante a realização do filme. Testemunha o não-visível de uma dada sociedade, no caso de “Toda nudez...”, da sociedade brasileira sob regime militar. Testemunha o não-permitido pelo Estado através de censuras ou críticas e “Toda nudez...” não escapou aos controles militares, já que o filme foi censurado pela Polícia Federal em 29 cinemas no Rio de Janeiro, de acordo com entrevista já citada, voltando a ser liberado, somente após receber o prêmio de melhor Filme em Berlim. Assim sendo, estudar um filme é “associá-lo com o mundo que o produz”[4] , considerando-o, não como uma obra de arte, mas sim como um produto, uma imagem-objeto, cujas significações não são somente cinematográficas.
Antes de iniciarmos a análise das significações de “Toda nudez...”, retomemos a imagem-objeto visível, que o filme de Jabor propõe, ainda que, resumidamente: __ Em uma família tradicional, Herculano, um homem puritano que só tinha tido uma mulher na vida, prometeu para Serginho, seu filho, enquanto a esposa agonizava, que jamais teria outra mulher. Pautando sua vida por rígidos códigos familiares e religiosos, continua decidido a manter-se fiel à mulher falecida. O vazio existencial de um núcleo familiar esgarçado pela morte da mulher, o leva a uma profunda depressão que preocupa suas tias. Estas, temendo que ele cometa suicídio, suplicam ao outro sobrinho, Patrício, irmão de Herculano, que procure alguém para preencher o vazio na vida dele.
Patrício, desempregado, dependente de Herculano, decide apresentá-lo a Geni, uma cantora de bordel e meretriz. Para Patrício, o sexo é a solução para o irmão. Herculano consegue romper com a memória da falecida e encontra em Geni a realização da sua felicidade sexual. Por outro lado, Geni encontra nele a segurança material que nunca teve.
Serginho, o filho que vive da memória da mãe morta, ao surpreender o pai com Geni, fica totalmente transtornado e se dirige a um boteco, e depois de embriagar-se, provoca uma briga e termina preso. Recolhido na cadeia, é estuprado por um ladrão boliviano.
Uma vez solto, decide aceitar o casamento do pai com Geni. Mas seus motivos são perversos. Serginho seduz Geni e passa a envolvê-la e ser seu amante. É a forma encontrada por ele para vingar a infidelidade do pai __ sendo amante da madrasta.
Mais tarde, Geni, apaixonada por Serginho, se transtorna e comete suicídio quando vê Serginho fugindo de avião com o ladrão boliviano.
O filme traça um retrato da hipocrisia moral da sociedade e gira em torno da família de um viúvo que jurou nunca mais se casar, mas que se apaixona por uma prostitutta. Como em toda obra de Nelson Rodrigues, o filme é provocativo e não aceita meios-termos: no caso, ou se tem a castidade absoluta, vivenciada pelo filho Serginho, exigindo o mesmo do pai viúvo, ou a devassidão sexual oportunizada por Geni.
Partindo do presente, toda a ação se resume a um grande flashback da narrativa de Geni, onde a história do complicado e obsessivo casal vai se desnudando aos poucos para o público.
Qual a abordagem sócio-histórica que o filme autoriza então? Além do drama familiar, claramente exposto, a adaptação da peça de mesmo nome de Nelson Rodrigues, “Toda nudez...” é, sem dúvida, um drama sobre a classe média brasileira que se confunde ao oscilar entre a burguesia (a família de Herculano) e o proletariado, representado no filme pela prostituta, suas colegas e pelo povo anônimo, capturado pela objetiva de Jabor nas cenas externas. Aliás, uma das mais bonitas do filme, quando Herculano decide pedir Geni em casamento. A cena é toda filmada por uma câmera escondida, de onde poderia focar os rostos dos personagens em meio a multidão, num cruzamento de trânsito no centro do Rio de Janeiro. Quando Geni diz o seu sim, aceitando casar-se com Herculano deixando a vida de devassidão, sai dançando no meio da rua entre o povo, trabalhadores, ambulantes e transeuntes numa espécie de grande valsa proletária. Há aqui, sem dúvida, uma referência ao descaso do governo militar para com este mesmo povo, quando se aliou a uma classe média, a fim de ascender ao poder. Entretanto, esta mesma classe média brasileira foi e já estava alijada do poder em 1973, ano de filmagem deste filme, pois, conforme historiografia brasileira, o regime militar deixou-se seduzir por capital estrangeiro, restando a classe média, aliar-se ao proletariado brasileiro para voltar ao poder.
As análises feitas dessas imagens permitem assinalar o conteúdo latente do filme: a luta de classes entre a burguesia e os operários, vivendo então, uma espécie de trégua a partir dos anos 1970 no sentido de vencerem um inimigo comum, o capital estrangeiro, apoiado e representado pelo regime militar. O casamento de Herculano com Geni, é uma representação desta classe média em bancarrotas, desesperada para sobreviver, fazendo concessões ao povo, Geni.
Analisar os acréscimos, supressões, modificações e imersões realizados por Jabor ao adaptar a peça de Nelson Rodrigues me permitiram descobrir um “zona de realidade não-visível”[5] ao olhar de um expectador comum. Investigando a crítica a respeito do filme; a censura executada pelo governo no lançamento do filme, inclusive autorizando o retorno, somente com modificações na cena final; os prêmios recebidos e entrevista concedida por Arnaldo Jabor, pude percorrer um caminho mais analítico, conseguindo perceber na obra de Jabor, mais do que um melodrama nacional, as menções políticas e sociais, presentes no filme que mostram bem a relação entre as classes: ao se casar com Herculano, Geni, a perfeita representação do povo, há de se comportar de acordo com os valores morais, religiosos e políticos, instituídos na classe instruída para assim ser aceita no meio.
A tragicomédia, estilo que se encontra entre a tragédia moderna e o melodrama se afirma, então, com a objetiva de Jabor, como uma nova forma de qualificar o drama social brasileiro e “Toda nudez...” radicaliza esse gênero cinematográfico.
Entre as supressões e modificações feitas, livremente, por Jabor, no texto de Nelson Rodrigues, a que melhor explicita o espírito da tragicomédia, produzindo uma crítica ao machismo presente no governo brasileiro, na época, representado pelas forças armadas, instituição predominantemente masculina, é o desvio do personagem principal que, na peça cabe à Herculano, para a mulher Geni. É ela que, no filme, mesmo morta, narra toda a história deixando ao personagem Herculano nenhum poder para mudar os fatos. Tudo já está consumado. É Geni quem surpreende Herculano com revelações, e a este, só resta surpreender-se com os fatos. O Homem aqui se encontra sem força nem controle. Uma crítica ao machismo vigente na sociedade brasileira de então. Nem o bigode, ostentando uma aparência viril na imagem de Herculano, construída por Jabor, o salva da posição de expectador dos acontecimentos, deixando à Geni o protagonismo na trama cinematográfica. Assim,
[...] há uma forma de compor ambientes burgueses e fazer “significar a cenografia ou o lado simbólico de uma fisionomia que permite destacar outro recorte de relações no cinema brasileiro. Há uma forma irônica de existir tipos cafonas que ostentam uma relação desajeitada entre aparência viril e bigode, [...] cenografia e fisionomia sugerem relações de longo alcance e com mais conseqüências a explorar[...] (XAVIER, 2001, 103).
Voltemos à seqüência da casa-tumular, onde acontece o suicídio. É notória, na casa que “enterrou” Geni, a decoração da propriedade de Herculano, cheia de quadros e esculturas, pintura acadêmica de mulheres, algumas envolvidas em lençóis brancos, num jogo de ocultação e sedução. Parece uma espécie de galeria, projetando uma vontade de civilização, muito comum às classes médias que se ostentam desejando um elo com a “alta cultura”. “Toda nudez...”, de Jabor, começa com a entrada de Herculano num cenário aparentado a galeria ou a um museu clássico: o casarão cheio de quadros e imagens de mulheres na parede acusam Herculano como se fossem olhares da tradição. Mais uma vez, o homem central da peça de Nelson é colocado como coadjuvante pelo filme de Jabor, que faz uma opção declarada por Geni, ou será, pelo Povo Brasileiro?
Em “Toda nudez...” é Geni o pólo da experiência e, Herculano, o da tosca inocência __ Há em Herculano, durante todo o filme, uma constante melancolia masculina (ele não sorri) que observamos com ironia, em razão, acredito eu, de algo na sua fisionomia, que tem a ver com o bigode__ tosca porque fora de lugar e de hora e porque não cai bem à figura do protagonista a situação final, quando ele é observado por aquele excesso de imagens femininas penduradas propositalmente, pela cenografia, na parede. “Imagens-espelho desse tipo são freqüentes nos filmes que, entre os anos 1960-80, adaptaram Nelson Rodrigues, corroborando a estilização do ambiente burguês, presente na tela desde os anos 1930, passando pela produção da Vera Cruz” (XAVIER, 1999, p.47).
A adaptação do texto de Nelson Rodrigues, realizada por Jabor em 1973, inseriu-se num movimento maior do cinema brasileiro, que, a partir de 1969-70, saltou da tematização do mundo do trabalho e das questões sociais da vida pública para o “drama de família”. Conflitos de gerações; a opressão doméstica e o crime passional e a degeneração da “casa-grande”(burguesia) no estilo álbum de família ganha lugar, sinalizando crises e mudanças. Ou seriam censuras? Controladas pelo braço estatal cinematográfico, a Embrafilme? O que torna mais interessante a análise deste filme de Jabor é o fato do mesmo ter sido financiado por este órgão, sob tutela militar, e mesmo assim, conter um conteúdo latente tão crítico e político, mesmo que ocultado pelo conteúdo aparente: a tragicomédia familiar. O filme, o tempo todo sinaliza uma zona de realidade (social) não evidente, vindo a tona, e, confirmando-se, somente com investigação criteriosa da obra original; da adaptação; do contexto histórico da época da realização do filme; do comportamento crítico do diretor, hoje comentarista da maior rede de televisão do país; ou seja, estudar o filme e associá-lo com o mundo que o produziu, seja ele “[...] imagem ou não da realidade, documento ou ficção, intriga autêntica ou pura invenção, é História”.[6]
Foi preciso que eu me detivesse não somente nas imagens _ que me encantavam o tempo todo _ mas também na narrativa, no cenário, no texto, no regime de governo, no autor, nas críticas, ou seja, em todas as relações do filme com aquilo que não era o filme. Assim agindo, espero ter conseguido chegar à compreensão não apenas da obra, mas também da realidade que “Toda nudez será castigada” representava ou fez-se representar pela direção de Arnaldo Jabor. A título de encerramento, gostaria de transcrever a fala última da personagem Geni, maravilhosamente interpretada por Darlene Glória, trabalho que lhe rendeu o Urso de Prata, no Festival de Berlim de 1974, que na cena final de “Toda nudez...” ecoava de uma fita gravada, minutos antes de suicidar-se:
“ [...] Herculano! Teu filho fugiu, sim, com o ladrão boliviano. Foram no mesmo avião, no mesmo avião. Estou só. Estou só, vou morrer só. Não quero nome no meu túmulo! Não ponham nada! E você, velho corno! Maldito você! Maldito o teu filho, e essa família só de tias. Lembranças à tia machona. Malditos também os meus seios!”. (Geni in Toda Nudez será castigada, filme de Arnaldo Jabor)
Assistir a estas cenas novamente, depois de tantos anos, emocionou-me muitíssimo. Todos os aplausos a Darlene Glória. Até hoje, a mais brilhante tradução de Nelson Rodrigues para o cinema. Arnaldo Jabor adapta a peça com indisfarçável admiração, mas também plena autonomia. No percurso, recebe o auxílio luxuoso e explosivo de Darlene Glória, sem a qual, Herculano prevaleceria como na peça. A exuberância de sua performance reforça o caminho tomado pela adaptação que, entre as tantas mudanças, desloca o foco de Herculano para Geni, e o mérito final é, sem dúvida, Darlene Glória! Glória! Glória!
FONTES:
__________________________. O Filme: uma contra-análise da sociedade?
JABOR, Arnaldo. Tramas Familiares. Entrevista concedida à Ismail Xavier. Disponível em: <http//www.jornalismo.ufsc.br/nelson_rodrigues> acesso em 13 de março de 2008.
Toda Nudez será Castigada. 1973. Filme de Arnaldo Jabor, adaptado da peça homônima de Nelson Rodrigues.
XAVIER, Ismail. Nelson Rodrigues no cinema (1952-1988). Cinemais, Rio de Janeiro, n. 19, set. out. 1999.
______________. O Cinema Brasileiro Moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
______________. Cinema: revelação e engano. In.: O Olhar. (organizador) Adauto Novaes. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
[1] Entrevista concedida por Jabor, diretor e produtor da adaptação de “Toda nudez será castigada”, filme baseado em peça homônima de Nelson Rodrigues, para o cinema. In.: JABOR, Arnaldo. Tramas Familiares. Disponível em: <http//www.jornalismo.ufsc.br/nelson_rodrigues> acesso em 13 de março de 2008.
[2] O Filme: uma contra-análise da sociedade? In.: ____________, p. 87.
[3] Id, p.87.
[4] Ibdi, p 86.
[5] Ibid, p.93.
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